Na sequência da aula de hoje, aqui está o artigo do Professor José Carlos Vieira de Andrade que tem como título "Revogação do acto administrativo". Este artigo é uma separata da publicação "Direito e Justiça" vol. VI, 1992.
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1. A construção dogmática da
revogação como figura unitária
Julgo
que todos estarão de acordo em que a elaboração de um código de procedimento
administrativo implica grandes riscos e exige do legislador muito mais do que a
feitura de legislação avulsa: um legislador avulso está mais solto, mais à
vontade, logo em face da limitação do objecto normativo; um legislador que
tenha a pretensão de fazer um código enfrenta naturalmente mais dificuldades e
tem de responder a exigências acrescidas.
Um
desses desafios é seguramente o do rigor conceitual, o da solidez e da
prosperidade dos conceitos normativos utilizados. É que um código vai valer e
tem de valer para um conjunto não só indeterminado como numeroso e variado de
situações, e isso exige o suporte de uma construção dogmática coerente.
Ora,
a revogação do acto administrativo aparece tratada no Código do Procedimento
Administrativo – na sequência de uma orientação tradicional da doutrina e na
jurisprudência portuguesas e diferentemente, aliás, do que se passa na
generalidade dos países europeus – como uma figura unitária, incluindo não só a
revogação propriamente dita, isto é, um acto que se dirige a fazer cessar os
efeitos doutro acto, por se entender que não é conveniente para o interesse
público manter esses efeitos produzidos anteriormente, mas também a revogação
anulatória ou anulação, um acto através do qual se pretende destruir os efeitos
de um acto anterior, mas com fundamento na sua ilegalidade, ou, pelo menos, num
vício que o torna ilegítimo, e por isso, inválido.
É
certo que o Código não contém uma definição expressa da revogação, mas resulta
do conjunto dos artigos que lhe dedica que é este o conceito de revogação
adoptado. De resto, tratando-se de uma concepção com apoio na doutrina
corrente, parece ter de entender-se – o Código não o afirma e aqui fica a
dúvida – que não se devem considerar incluídos na figura da revogação outros
actos que também fazem cessar os efeitos de outros actos, designadamente as
declarações de caducidade, os chamados ‘’actos contrários’’ e os actos
sancionatórios ou de intenção sancionatória.
Acontece
que, mesmo assim apurada, uma figura unitária de revogação, incluindo a
revogação propriamente dita e a revogação anulatória, significa a utilização de
um só conceito para designar duas categorias distintas, e talvez quase
completamente distintas, de actos administrativos.
De
facto, a revogação propriamente dita distingue-se, desde logo, da revogação
anulatória, porque na revogação (propriamente dita) está em causa o exercício
de uma função da administração activa, enquanto que na revogação anulatória se
está a cumprir uma função de controlo.
Por
isso mesmo, o fundamento da revogação propriamente dita é tipicamente a
inconveniência actual para o interesse público, tal como é configurado pelo
agente, da manutenção dos efeitos do acto que é revogado, enquanto que o
fundamento ou a causa do acto na revogação anulatória (ou anulação) é a
ilegalidade do acto.
Daí
decorre outra diferença: o poder de revogação pertence a quem possa praticar o
acto, ou seja, integra a competência dispositiva, enquanto que é competente
para anular um acto (ou proceder a uma revogação anulatória) quem quer que
tenha um poder de controlo, uma competência de fiscalização: na maior parte dos
casos, além do autor, o titular de um poder de superintendência ou de tutela.
Também
acontece que são susceptíveis de anulação ou revogação anulatória quaisquer
actos, ao passo que à revogação propriamente dita estão sujeitos apenas alguns
tipos de actos, designadamente os actos com eficácia duradoura (ou actos de
eficácia instantânea ainda não executados) e apenas aqueles que incluam o
exercício de poderes discricionários.
Por
último, também os efeitos de uma e de outra figura são diversos. Os efeitos de
uma revogação são, em princípio, efeitos para o futuro (‘’ex nunc’’), embora
possam em certos casos ser retrotraídos a um momento anterior, enquanto que os
efeitos naturais da revogação anulatória se produzem ‘’ex tunc’’, reportando-se
ao momento da prática do acto anulado (ou ao da existência do vício).
Em
face desta distinção profunda entre as duas categorias, pergunta-se se
realmente o Código não deveria ter ido ao ponto de as separar e autonomizar, em
vez de as tratar conjuntamente numa mesma secção. Isto não apenas, nem fundamentalmente,
por uma questão conceitual ou de asseio formal, para satisfazer puras
preocupações analíticas ou alguns interesses doutrinários; mas porque a
circunstância de estas duas figuras aparecerem tratadas em conjunto poderá
eventualmente causar na prática alguns problemas, alguma perturbação – e são
alguns exemplos dessa perturbação que eu queria aqui trazer para justificar o
meu posto de vista.
a) Em primeiro lugar, no que diz respeito
à competência para revogar (agora num sentido amplo).
O
Código diz, no artigo 142º, nº1, que são competentes para a revogação, além dos
autores do acto, os respectivos superiores hierárquicos, desde que não se trate
de acto da competência exclusiva do subalterno. Parece, pois, que o superior
hierárquico do autor do acto só terá competência para a revogação – isto é,
tanto para a revogação propriamente dita como para a revogação anulatória – se
o acto não for da competência exclusiva do subalterno.
Ora,
pergunto: por que não admitir que o superior hierárquico possa anular os actos
ilegais do seu inferior, mesmo quando não tenha competência para os praticar
(e, portanto, para os revogar), isto é, mesmo que a competência seja exclusiva
do subalterno? É que, quando se está a anular, não se está a exercer a
competência dispositiva relativamente àquele acto, está-se ‘’apenas’’ a
fiscalizar.
Julgo
que o facto de se tratar em conjunto a revogação propriamente dita e a
revogação anulatória faz com que neste caso se proíba algo que talvez deva
admitir-se: que o superior hierárquico anule os actos ilegais dos seus
inferiores mesmo que estes tenham competência exclusiva.
No
entanto, o Código traz mais perplexidades nesta matéria. É que, no mínimo, não
há compatibilidade total entre o artigo 142º do Código, que acabei de referir,
e o artigo 174º,nº1, já que aqui se admite em geral que o superior hierárquico
possa, em recurso, revogar o acto, embora só tenha poderes para o modificar ou
substituir quando a competência do autor do acto não seja exclusiva.
Ora,
independentemente do problema da harmonização dos dois preceitos, certo é que
uma vez mais se estabelece, por confusão, uma solução inconveniente. Se
entendermos que o superior hierárquico tem o poder de revogar o acto (de o
‘’anular’’ ou de o ‘’revogar’’), mesmo em casos de competência exclusiva do
subalterno, então estaremos a cair no outro pecado, no pecado contrário: vai-se
longe demais, permitindo em geral o que deveria ser proibido ou só
excepcionalmente admito, isto é, que o superior hierárquico possa, ainda que só
em recurso, revogar um acto sem ser com fundamento na sua ilegalidade, usando
afinal uma competência dispositiva que é por força da lei exclusiva do autor do
acto.
Parece-me
que, nestes casos, a circunstância de o Código tratar em conjunto as duas
figuras, que são distintas, traz, de facto, alguma perturbação para a prática
jurídica administrativa.
Já
agora, ainda em matéria de competência: julgo que o facto de se dizer, no nº2
do artigo 142º, que os actos administrativos podem ser revogados pelo
delegante, não se fazendo a distinção entre a revogação propriamente dita e a
revogação anulatória, impede que se ponha um problema: se não seria de admitir
aqui uma distinção, se não se justificaria limitar os poderes de ‘’revogação’’
do delegante, conferindo-lhe sempre a competência para anular o acto ilegal do
delegado, mas recusando-lhe, em regra, o poder de revogar, isto é, de
reexaminar a avaliação do interesse público feita pelo delegado, dando assim um
alcance real e efectivo à delegação como forma ou meio de desconcentração de
poderes.
É
claro que a solução legal não encerra nenhuma contradição lógica ou sequer
doutrinária, visto que o delegante tem entre nós poder dispositivo, sendo,
portanto, perfeitamente compreensível que ele possa revogar os actos do
delegado; simplesmente, talvez a separação das duas figuras da revogação
pudesse deste modo contribuir para que a delegação representasse uma forma mais
eficaz da desconcentração administrativa que a Constituição recomenda.
b) Um outro sinal de um certo desconforto
do nosso Código da Procedimento Administrativo, que parece estar também
associado à não distinção entre os dois tipos de revogação, é o que resulta da
leitura do artigo 141º, nº1
Aí
se prescreve que ‘’os actos administrativos que sejam inválidos só podem ser
revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo
recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida’’.
Ora,
esta redacção do preceito pode levar, pelo menos à primeira vista, à conclusão,
julgo que enganosa, de que um acto inválido não pode ser revogado, que só pode
ser anulado pela Administração, quando se deve entender que o facto de ele ser
inválido não implica necessariamente que ele seja insusceptível de ser
revogado, isto é, de ser afastado com fundamento no juízo administrativo que
conclua pela sua inconveniência ou inoportunidade para o interesse público.
Julgo,
pois, em conclusão, que o Código ganharia nesta matéria alguma clareza e rigor,
se levasse até ao fim a distinção entre a revogação propriamente dita e a
revogação anulatória ou anulação administrativa, figuras que, afinal, já
aparecem em certos aspectos reguladas separadamente no texto normativo.
2. A ponderação de interesses no
regime da revogabilidade dos actos.
Uma
outra exigência que é legítimo dirigir em especial a um código do procedimento
administrativo, precisamente porque respeita a uma quase infinidade de
situações possíveis nas relações administrativas, é a de tentar, por princípio
e por sistema, conseguir um equilíbrio entre os diversos valores e interesses
em jogo.
Em
primeiro lugar, valores como a transparência, a racionalidade a participação
dos interessados, a boa fé, a segurança e a estabilidade, a eficiência e a
celeridade são valores jurídico-administrativos que, além de se apresentarem
com diversos graus de intensidade, nem sempre concorrem no mesmo sentido.
Depois, são também frequentes as situações de conflito entre interesses
públicos, e, naturalmente, entre o interesse público visto como interesse da
comunidade e os interesses e os direitos dos particulares individualmente
considerados.
Sendo
assim, as leis do procedimento administrativo deverão orientar-se, na escolha
das soluções normativas, por uma ideia de proporcionalidade, procurando sempre
assegurar um equilíbrio entre os interesses em jogo, e, designadamente, o
equilíbrio entre a realização do interesse publico e a satisfação dos
interesses e dos direitos dos particulares.
Parto
aqui, obviamente, duma pré-compreensão: a de que a legislação sobre o
procedimento administrativo, tal como, tal como não deve procurar a qualquer
preço a realização dos interesses comunitários, também não deve ter uma vocação
meramente garantística, isto é, não deve ter como finalidade única ou sequer
principal a defesa dos direitos dos administrados.
Por
um lado, regula-se uma actividade que visa satisfazer interesses relevantes da
comunidade e que está a cargo de autoridades legítimas (embora não goze de uma
verdadeira presunção de legitimidade); por outro lado, a finalidade do
procedimento é a de alcançar a satisfação do interesse público pela forma mais
adequada, estando constitucionalmente prescrito que essa satisfação deve
conseguir-se no respeito pelos direitos e interesses lealmente protegidos dos
administrados.
Ora
julgo poder concluir-se das normas do Código do Procedimento Administrativo
relativas a revogação que, pelo menos, não e patente que tenha havido a
preocupação de efectuar uma ponderação entre os interesses públicos e os
interesses dos administrados para obter uma solução de equilíbrio.
a)
Isto
verifica-se, por exemplo, no que diz respeito a revogação anulatória, onde os
interesses conflituantes são, de um lado, o interesse da restauração da
legalidade, sempre implicado na anulação, e, porventura o interesse publico
substancial que o acto visa prosseguir, e, do outro lado, a estabilidade das
situações jurídicas e a protecção da confiança associada aos direitos
adquiridos e, em geral as expectativas dos particulares interessados.
No artigo
141., relativamente a este conflito, optou-se por um modelo que podemos
designar por “modelo francês”: admite-se em geral a revogação anulatória dos
actos, embora apenas dentro do prazo para o recurso contencioso ou até à
resposta da entidade recorrida. Quer isto dizer que, até essa data, se admite
sempre a anulação administrativa do acto, e que, depois dessa data, se deixa
pura e simplesmente de admitir a possibilidade de a ilegalidade vir a ser
reconhecida pela própria Administração Pública.
Optou-se, portanto, por uma solução meramente
temporal, não se tomando em consideração aspectos relevantes que recomendariam
diferenças de regime.
Assim, julgo que deveria ser considerada a este
propósito, do lado dos actos administrativos, a diferença entre actos
constitutivos e actos não constitutivos de direitos – ou, talvez mais
adequadamente, entre actos favoráveis e actos desfavoráveis; tal como, do lado
dos administrados, se deveria ter em conta que, umas vezes, o particular está
de má fé – podendo até a ilegalidade do acto resultar de dolo, de corrupção activa
ou de coacção exercida por ele – ou pelo menos, tem conhecimento da
ilegalidade, enquanto que, noutros casos, o particular está de boa fé, confiou
justificadamente na Administração e nos seus resultados e tem, por isso,
expectativas legítimas e uma confiança que merece protecção.
Tendo em conta estas distinções, julgo que se
poderia admitir a anulação administrativa (a revogação anulatória)
independentemente e para além do prazo de recurso – apesar de este ser entre
nós, para este efeito, de um ano e, portanto, relativamente longo - , por
exemplo, se se tratasse de um acto desfavorável, ou mesmo de um acto favorável,
quando o particular estivesse de má fé, designadamente quando não merecesse ou
não fosse justificada a confiança depositada na estabilidade do acto
administrativo. Por outro lado, e em contrapartida, talvez devesse admitir-se
livremente, dentro do prazo de recurso contencioso, a anulação de um acto
administrativo favorável ou constitutivo de direitos: se o particular estivesse
de boa fé e tivesse razões para confiar na legitimidade do acto administrativo,
deveria efectuar-se uma ponderação entre os seus “direitos” e o interesse
público, procedendo-se à anulação apenas quando o interesse público o impusesse
e assegurando sempre, nesses casos, uma indemnização pelos danos causados.
Ora, isso não acontece na nossa lei, que trata por
igual todas as situações, não tendo em atenção diferenças típicas na composição
dos interesses em jogo, apesar de se tratar de diferenças normais e
previsíveis.
Aliás, ainda se poderá perguntar quais são os
interesses fundamentais que justificam a exclusão da possibilidade de a
Administração, no caso de ter havido recurso contencioso, anular o acto para
além do momento da resposta da entidade recorrida. Se o processo administrativo
se prolonga, pelas razões mais variadas, às vezes por muitos anos, por que não
admitir que o órgão administrativo competente possa anular o acto em momento
posterior à resposta, se só então chegou à conclusão de que o acto era
realmente ilegal? Note-se que o órgão competente para a revogação anulatória
não é necessariamente a autoridade recorrida que respondeu, acrescendo que o
órgão autor do acto, para além dos casos em que possa mudar de opinião, pode
também mudar de titular. Obviamente que ao particular, além do não pagamento
das custas, teria de assegurar-se o direito de indemnização pelos danos
sofridos e, mesmo, o direito de requerer o prosseguimento do recurso se tivesse
nisso interesse relevante.
É certo que o nosso Código se limita a manter,
nesta matéria, a opção tradicional pelo modo francês, mas o que se questiona é
a própria opção, em face das diferenças entre os sistemas
jurídico-administrativos: em França há uma justiça pretoriana, há uma
jurisprudência que é fonte de direito, que pode fazer distinções para além da
lei e até em certa medida se sente autorizada a corrigir a própria norma legal;
entre nós, julgo que a jurisprudência não tem feito isso e não sei se o sistema
comporta a possibilidade ou a intenção de que lhe seja cometido esse encargo.
Note-se, por fim, que a argumentação apresentada se
baseia em parte num postulado que, sendo aceite por sectores relevantes da
doutrina europeia, contraria a posição corrente na doutrina e na jurisprudência
portuguesa: o de que não se pode excluir
a anulação pela Administração (a revogação anulatória) depois de passado o
prazo de recurso por se entender que a queda desse prazo implica a validação do
acto; isto é, partimos do princípio de que o mero decurso do prazo do recurso
contencioso apenas impede a impugnação jurisdicional do acto anulável, não
podendo contudo, transformá-lo num acto válido se o vício se mantém e não foi
efectivamente eliminado.
b) No que respeita à revogação propriamente dita,
optou-se, no artigo 140º, por estabelecer a regra da livre revogabilidade dos
actos administrativos, exceptuando, além dos actos que poderemos qualificar
como actos devidos, os “actos
constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos” – neste caso,
salvo se houver concordância do particular e essa concordância for possível,
como resulta do nº2 do mesmo artigo.
Também aqui me parece revelar-se alguma falta de
atenção à diversidade das situações concretas possíveis, tendo-se considerado
apenas, em abstracto, a estabilidade jurídica de certo tipo de actos.
De facto, diz-se que o acto administrativo é
livremente revogável, salvo se for constitutivo de direitos ou interesses
legalmente protegidos, caso em que será sempre irrevogável. Isto é, assegura-se
pura e simplesmente a estabilidade desses actos, sem medir os interesses em
jogo, desprezando a eventual relevância da revogação para o interesse público,
e não curando de saber se os interesses do particular merecem tutela, se a
confiança depositada na estabilidade das posições jurídicas subjectivas
constituídas é, ou não, digna de protecção da ordem jurídica.
Ora, há determinadas situações e que, seja por
alteração da lei, seja pela alteração da situação de facto, seja mesmo pela
alteração fundamentada das concepções da própria Administração, o interesse
público pode tornar inconveniente ou até imperiosa a revogação de um acto
administrativo constitutivo de direitos.
E, se isto acontecer, talvez se deva admitir a
revogação, pelo menos em determinados casos, quando a realização do interesse
público justificas inequivocamente a supremacia em face dos interesses dos
particulares, e sobretudo se não houver razão para proteger a confiança do
particular na manutenção da situação constituída – designadamente, quando o
particular não estiver de boa fé (a má fé não implica necessariamente a
ilegalidade do acto). Claro que, tratando-se de extinguir ou de restringir
direitos ou posições jurídicas constituídas, a Administração teria de
indemnizar o particular pelos prejuízos causados pela revogação, nos termos
gerais em que se estabelece a indemnização por actos ablatórios.
Esta possibilidade deveria talvez ser admitida para
que o interesse público pudesse ser prosseguido pela Administração da forma
mais adequada às circunstâncias, embora só em casos contados e com as devidas
cautelas, de modo a garantir as legitimas expectativas dos particulares – seria
uma vez mais, adoptar uma solução em que se procederia a uma ponderação entre o
interesse público e os interesses particulares em jogo.
Julgo que a solução do Código revela, por isso, uma
preocupação legítima, mas porventura excessiva, de garantir o particular,
prejudicando a desejável flexibilidade na realização do interesse público a
cargo da Administração.
E esta dúvida é tanto mais forte quanto é certo que
o artigo 140º não ressalva só da revogação dos actos constitutivos de direitos
mas também os actos constitutivos de
interesses legalmente protegidos.
Se a expressão “actos constitutivos de direitos”
era já um conceito de difícil concretização em face do ordenamento anterior, a
doutrina e a jurisprudência vão ter dificuldades acrescidas em determinar o que
é um acto constitutivo de interesses legalmente protegidos. Desde logo, porque
não se vê bem como um acto administrativo possa visar directamente a constituição
de um tal interesse; depois porque tal expressão poderá alargar de forma
incomportável o conjunto dos actos susceptíveis de revogação: pense-se, por
exemplo, em factos favoráveis precários, que não são considerados como
constitutivos de direitos, ou em geral, nas licenças e concessões, quando os
direitos constituídos a favor do particular funcionam relativamente à
Administração como interesses legítimos, precisamente porque “estão
enfraquecidos” em face do poder de revogação desta, ainda que com a obrigação
de indemnização.
É claro que, em rigor, o artigo 140º do Código não
afirma que, nesses casos, não possa haver revogação, mas tão só que os actos
administrativos não são livremente revogáveis, o que pode levar a entendimentos
habilidosos susceptíveis de permitir soluções diferenciadas. No entanto, julgo
que o código só ganharia se fosse claro neste aspecto: não lhe sendo exigível
que fornecesse uma definição de acto constitutivo de direitos, seria de
esperar, pelo menos, que não provocasse novos problemas de aplicação.
3. Outros
aspectos do regime da revogação
Por último salientaria apenas matérias que o Código
não regula ou problemas a que não dá resposta, apesar de alguns deles terem
sido contemplados em projectos anteriores.
Assim acontece, no meu entender, com o problema da
revogação de acto praticado por um órgão incompetente. De facto, não pode
pretender-se que o nº1 do artigo 142.º, ao estabelecer que são competentes para
a revogação os autores do acto (ou, em certos casos, os superiores hierárquicos),
esteja a consagrar a solução de que o órgão competente nunca pode revogar actos
praticados por órgão incompetente, proibição que não decorre necessariamente do
texto e me parece injustificável, sobretudo se entendida como proibição geral, envolvendo
a própria revogação por substituição. Parece-me muito mais adequado interpretar
o Código no sentido de que esta matéria não está regulada, tal como não foi
contemplada a hipótese paralela de alteração superveniente das competências,
embora essas hipóteses devessem estar expressamente resolvidas.
O Código também não se pronuncia sobre a proibição,
defendida na doutrina, de o delegado revogar actos praticados pelo delegante,
apesar de contemplar a hipótese inversa. Assim como não se refere à admissibilidade
da reserva de revogação como cláusula acessória dos actos administrativos,
ausente da enumeração feita no artigo 121º - embora esta falta não deva ser
interpretada no sentido da impossibilidade da aposição de reservas de revogação
aos actos administrativos, ela cria, pelo menos, algumas dificuldades.
Do mesmo modo, não ficou resolvida, mas quanto a
isso julgo que bem, a questão de saber se a Administração tem o dever de
revogação, designadamente o dever de anulação de um acto administrativo ilegal:
dado que essa questão não está hoje suficientemente esclarecida, é prudente
deixá-la ainda em aberto ao labor da doutrina e da jurisprudência.
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