terça-feira, 8 de maio de 2012


Na sequência da aula de hoje, aqui está o artigo do Professor José Carlos Vieira de Andrade que tem como título "Revogação do acto administrativo". Este artigo é uma separata da publicação "Direito e Justiça" vol. VI, 1992.


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1. A construção dogmática da revogação como figura unitária

Julgo que todos estarão de acordo em que a elaboração de um código de procedimento administrativo implica grandes riscos e exige do legislador muito mais do que a feitura de legislação avulsa: um legislador avulso está mais solto, mais à vontade, logo em face da limitação do objecto normativo; um legislador que tenha a pretensão de fazer um código enfrenta naturalmente mais dificuldades e tem de responder a exigências acrescidas.
Um desses desafios é seguramente o do rigor conceitual, o da solidez e da prosperidade dos conceitos normativos utilizados. É que um código vai valer e tem de valer para um conjunto não só indeterminado como numeroso e variado de situações, e isso exige o suporte de uma construção dogmática coerente.
Ora, a revogação do acto administrativo aparece tratada no Código do Procedimento Administrativo – na sequência de uma orientação tradicional da doutrina e na jurisprudência portuguesas e diferentemente, aliás, do que se passa na generalidade dos países europeus – como uma figura unitária, incluindo não só a revogação propriamente dita, isto é, um acto que se dirige a fazer cessar os efeitos doutro acto, por se entender que não é conveniente para o interesse público manter esses efeitos produzidos anteriormente, mas também a revogação anulatória ou anulação, um acto através do qual se pretende destruir os efeitos de um acto anterior, mas com fundamento na sua ilegalidade, ou, pelo menos, num vício que o torna ilegítimo, e por isso, inválido.
É certo que o Código não contém uma definição expressa da revogação, mas resulta do conjunto dos artigos que lhe dedica que é este o conceito de revogação adoptado. De resto, tratando-se de uma concepção com apoio na doutrina corrente, parece ter de entender-se – o Código não o afirma e aqui fica a dúvida – que não se devem considerar incluídos na figura da revogação outros actos que também fazem cessar os efeitos de outros actos, designadamente as declarações de caducidade, os chamados ‘’actos contrários’’ e os actos sancionatórios ou de intenção sancionatória.
Acontece que, mesmo assim apurada, uma figura unitária de revogação, incluindo a revogação propriamente dita e a revogação anulatória, significa a utilização de um só conceito para designar duas categorias distintas, e talvez quase completamente distintas, de actos administrativos.
De facto, a revogação propriamente dita distingue-se, desde logo, da revogação anulatória, porque na revogação (propriamente dita) está em causa o exercício de uma função da administração activa, enquanto que na revogação anulatória se está a cumprir uma função de controlo.
Por isso mesmo, o fundamento da revogação propriamente dita é tipicamente a inconveniência actual para o interesse público, tal como é configurado pelo agente, da manutenção dos efeitos do acto que é revogado, enquanto que o fundamento ou a causa do acto na revogação anulatória (ou anulação) é a ilegalidade do acto.
Daí decorre outra diferença: o poder de revogação pertence a quem possa praticar o acto, ou seja, integra a competência dispositiva, enquanto que é competente para anular um acto (ou proceder a uma revogação anulatória) quem quer que tenha um poder de controlo, uma competência de fiscalização: na maior parte dos casos, além do autor, o titular de um poder de superintendência ou de tutela.
Também acontece que são susceptíveis de anulação ou revogação anulatória quaisquer actos, ao passo que à revogação propriamente dita estão sujeitos apenas alguns tipos de actos, designadamente os actos com eficácia duradoura (ou actos de eficácia instantânea ainda não executados) e apenas aqueles que incluam o exercício de poderes discricionários.
Por último, também os efeitos de uma e de outra figura são diversos. Os efeitos de uma revogação são, em princípio, efeitos para o futuro (‘’ex nunc’’), embora possam em certos casos ser retrotraídos a um momento anterior, enquanto que os efeitos naturais da revogação anulatória se produzem ‘’ex tunc’’, reportando-se ao momento da prática do acto anulado (ou ao da existência do vício).
Em face desta distinção profunda entre as duas categorias, pergunta-se se realmente o Código não deveria ter ido ao ponto de as separar e autonomizar, em vez de as tratar conjuntamente numa mesma secção. Isto não apenas, nem fundamentalmente, por uma questão conceitual ou de asseio formal, para satisfazer puras preocupações analíticas ou alguns interesses doutrinários; mas porque a circunstância de estas duas figuras aparecerem tratadas em conjunto poderá eventualmente causar na prática alguns problemas, alguma perturbação – e são alguns exemplos dessa perturbação que eu queria aqui trazer para justificar o meu posto de vista.
a)         Em primeiro lugar, no que diz respeito à competência para revogar (agora num sentido amplo).
O Código diz, no artigo 142º, nº1, que são competentes para a revogação, além dos autores do acto, os respectivos superiores hierárquicos, desde que não se trate de acto da competência exclusiva do subalterno. Parece, pois, que o superior hierárquico do autor do acto só terá competência para a revogação – isto é, tanto para a revogação propriamente dita como para a revogação anulatória – se o acto não for da competência exclusiva do subalterno.
Ora, pergunto: por que não admitir que o superior hierárquico possa anular os actos ilegais do seu inferior, mesmo quando não tenha competência para os praticar (e, portanto, para os revogar), isto é, mesmo que a competência seja exclusiva do subalterno? É que, quando se está a anular, não se está a exercer a competência dispositiva relativamente àquele acto, está-se ‘’apenas’’ a fiscalizar.

Julgo que o facto de se tratar em conjunto a revogação propriamente dita e a revogação anulatória faz com que neste caso se proíba algo que talvez deva admitir-se: que o superior hierárquico anule os actos ilegais dos seus inferiores mesmo que estes tenham competência exclusiva.

No entanto, o Código traz mais perplexidades nesta matéria. É que, no mínimo, não há compatibilidade total entre o artigo 142º do Código, que acabei de referir, e o artigo 174º,nº1, já que aqui se admite em geral que o superior hierárquico possa, em recurso, revogar o acto, embora só tenha poderes para o modificar ou substituir quando a competência do autor do acto não seja exclusiva.

Ora, independentemente do problema da harmonização dos dois preceitos, certo é que uma vez mais se estabelece, por confusão, uma solução inconveniente. Se entendermos que o superior hierárquico tem o poder de revogar o acto (de o ‘’anular’’ ou de o ‘’revogar’’), mesmo em casos de competência exclusiva do subalterno, então estaremos a cair no outro pecado, no pecado contrário: vai-se longe demais, permitindo em geral o que deveria ser proibido ou só excepcionalmente admito, isto é, que o superior hierárquico possa, ainda que só em recurso, revogar um acto sem ser com fundamento na sua ilegalidade, usando afinal uma competência dispositiva que é por força da lei exclusiva do autor do acto.

Parece-me que, nestes casos, a circunstância de o Código tratar em conjunto as duas figuras, que são distintas, traz, de facto, alguma perturbação para a prática jurídica administrativa.

Já agora, ainda em matéria de competência: julgo que o facto de se dizer, no nº2 do artigo 142º, que os actos administrativos podem ser revogados pelo delegante, não se fazendo a distinção entre a revogação propriamente dita e a revogação anulatória, impede que se ponha um problema: se não seria de admitir aqui uma distinção, se não se justificaria limitar os poderes de ‘’revogação’’ do delegante, conferindo-lhe sempre a competência para anular o acto ilegal do delegado, mas recusando-lhe, em regra, o poder de revogar, isto é, de reexaminar a avaliação do interesse público feita pelo delegado, dando assim um alcance real e efectivo à delegação como forma ou meio de desconcentração de poderes.

É claro que a solução legal não encerra nenhuma contradição lógica ou sequer doutrinária, visto que o delegante tem entre nós poder dispositivo, sendo, portanto, perfeitamente compreensível que ele possa revogar os actos do delegado; simplesmente, talvez a separação das duas figuras da revogação pudesse deste modo contribuir para que a delegação representasse uma forma mais eficaz da desconcentração administrativa que a Constituição recomenda.

b)         Um outro sinal de um certo desconforto do nosso Código da Procedimento Administrativo, que parece estar também associado à não distinção entre os dois tipos de revogação, é o que resulta da leitura do artigo 141º, nº1
Aí se prescreve que ‘’os actos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida’’.

Ora, esta redacção do preceito pode levar, pelo menos à primeira vista, à conclusão, julgo que enganosa, de que um acto inválido não pode ser revogado, que só pode ser anulado pela Administração, quando se deve entender que o facto de ele ser inválido não implica necessariamente que ele seja insusceptível de ser revogado, isto é, de ser afastado com fundamento no juízo administrativo que conclua pela sua inconveniência ou inoportunidade para o interesse público.

Julgo, pois, em conclusão, que o Código ganharia nesta matéria alguma clareza e rigor, se levasse até ao fim a distinção entre a revogação propriamente dita e a revogação anulatória ou anulação administrativa, figuras que, afinal, já aparecem em certos aspectos reguladas separadamente no texto normativo.


2. A ponderação de interesses no regime da revogabilidade dos actos.

Uma outra exigência que é legítimo dirigir em especial a um código do procedimento administrativo, precisamente porque respeita a uma quase infinidade de situações possíveis nas relações administrativas, é a de tentar, por princípio e por sistema, conseguir um equilíbrio entre os diversos valores e interesses em jogo.

Em primeiro lugar, valores como a transparência, a racionalidade a participação dos interessados, a boa fé, a segurança e a estabilidade, a eficiência e a celeridade são valores jurídico-administrativos que, além de se apresentarem com diversos graus de intensidade, nem sempre concorrem no mesmo sentido. Depois, são também frequentes as situações de conflito entre interesses públicos, e, naturalmente, entre o interesse público visto como interesse da comunidade e os interesses e os direitos dos particulares individualmente considerados.
Sendo assim, as leis do procedimento administrativo deverão orientar-se, na escolha das soluções normativas, por uma ideia de proporcionalidade, procurando sempre assegurar um equilíbrio entre os interesses em jogo, e, designadamente, o equilíbrio entre a realização do interesse publico e a satisfação dos interesses e dos direitos dos particulares.
Parto aqui, obviamente, duma pré-compreensão: a de que a legislação sobre o procedimento administrativo, tal como, tal como não deve procurar a qualquer preço a realização dos interesses comunitários, também não deve ter uma vocação meramente garantística, isto é, não deve ter como finalidade única ou sequer principal a defesa dos direitos dos administrados.
Por um lado, regula-se uma actividade que visa satisfazer interesses relevantes da comunidade e que está a cargo de autoridades legítimas (embora não goze de uma verdadeira presunção de legitimidade); por outro lado, a finalidade do procedimento é a de alcançar a satisfação do interesse público pela forma mais adequada, estando constitucionalmente prescrito que essa satisfação deve conseguir-se no respeito pelos direitos e interesses lealmente protegidos dos administrados.
Ora julgo poder concluir-se das normas do Código do Procedimento Administrativo relativas a revogação que, pelo menos, não e patente que tenha havido a preocupação de efectuar uma ponderação entre os interesses públicos e os interesses dos administrados para obter uma solução de equilíbrio.

a)      Isto verifica-se, por exemplo, no que diz respeito a revogação anulatória, onde os interesses conflituantes são, de um lado, o interesse da restauração da legalidade, sempre implicado na anulação, e, porventura o interesse publico substancial que o acto visa prosseguir, e, do outro lado, a estabilidade das situações jurídicas e a protecção da confiança associada aos direitos adquiridos e, em geral as expectativas dos particulares interessados.
 No artigo 141., relativamente a este conflito, optou-se por um modelo que podemos designar por “modelo francês”: admite-se em geral a revogação anulatória dos actos, embora apenas dentro do prazo para o recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida. Quer isto dizer que, até essa data, se admite sempre a anulação administrativa do acto, e que, depois dessa data, se deixa pura e simplesmente de admitir a possibilidade de a ilegalidade vir a ser reconhecida pela própria Administração Pública.
Optou-se, portanto, por uma solução meramente temporal, não se tomando em consideração aspectos relevantes que recomendariam diferenças de regime.
Assim, julgo que deveria ser considerada a este propósito, do lado dos actos administrativos, a diferença entre actos constitutivos e actos não constitutivos de direitos – ou, talvez mais adequadamente, entre actos favoráveis e actos desfavoráveis; tal como, do lado dos administrados, se deveria ter em conta que, umas vezes, o particular está de má fé – podendo até a ilegalidade do acto resultar de dolo, de corrupção activa ou de coacção exercida por ele – ou pelo menos, tem conhecimento da ilegalidade, enquanto que, noutros casos, o particular está de boa fé, confiou justificadamente na Administração e nos seus resultados e tem, por isso, expectativas legítimas e uma confiança que merece protecção.
Tendo em conta estas distinções, julgo que se poderia admitir a anulação administrativa (a revogação anulatória) independentemente e para além do prazo de recurso – apesar de este ser entre nós, para este efeito, de um ano e, portanto, relativamente longo - , por exemplo, se se tratasse de um acto desfavorável, ou mesmo de um acto favorável, quando o particular estivesse de má fé, designadamente quando não merecesse ou não fosse justificada a confiança depositada na estabilidade do acto administrativo. Por outro lado, e em contrapartida, talvez devesse admitir-se livremente, dentro do prazo de recurso contencioso, a anulação de um acto administrativo favorável ou constitutivo de direitos: se o particular estivesse de boa fé e tivesse razões para confiar na legitimidade do acto administrativo, deveria efectuar-se uma ponderação entre os seus “direitos” e o interesse público, procedendo-se à anulação apenas quando o interesse público o impusesse e assegurando sempre, nesses casos, uma indemnização pelos danos causados.
Ora, isso não acontece na nossa lei, que trata por igual todas as situações, não tendo em atenção diferenças típicas na composição dos interesses em jogo, apesar de se tratar de diferenças normais e previsíveis.
Aliás, ainda se poderá perguntar quais são os interesses fundamentais que justificam a exclusão da possibilidade de a Administração, no caso de ter havido recurso contencioso, anular o acto para além do momento da resposta da entidade recorrida. Se o processo administrativo se prolonga, pelas razões mais variadas, às vezes por muitos anos, por que não admitir que o órgão administrativo competente possa anular o acto em momento posterior à resposta, se só então chegou à conclusão de que o acto era realmente ilegal? Note-se que o órgão competente para a revogação anulatória não é necessariamente a autoridade recorrida que respondeu, acrescendo que o órgão autor do acto, para além dos casos em que possa mudar de opinião, pode também mudar de titular. Obviamente que ao particular, além do não pagamento das custas, teria de assegurar-se o direito de indemnização pelos danos sofridos e, mesmo, o direito de requerer o prosseguimento do recurso se tivesse nisso interesse relevante.
É certo que o nosso Código se limita a manter, nesta matéria, a opção tradicional pelo modo francês, mas o que se questiona é a própria opção, em face das diferenças entre os sistemas jurídico-administrativos: em França há uma justiça pretoriana, há uma jurisprudência que é fonte de direito, que pode fazer distinções para além da lei e até em certa medida se sente autorizada a corrigir a própria norma legal; entre nós, julgo que a jurisprudência não tem feito isso e não sei se o sistema comporta a possibilidade ou a intenção de que lhe seja cometido esse encargo.
Note-se, por fim, que a argumentação apresentada se baseia em parte num postulado que, sendo aceite por sectores relevantes da doutrina europeia, contraria a posição corrente na doutrina e na jurisprudência portuguesa:  o de que não se pode excluir a anulação pela Administração (a revogação anulatória) depois de passado o prazo de recurso por se entender que a queda desse prazo implica a validação do acto; isto é, partimos do princípio de que o mero decurso do prazo do recurso contencioso apenas impede a impugnação jurisdicional do acto anulável, não podendo contudo, transformá-lo num acto válido se o vício se mantém e não foi efectivamente eliminado.

b) No que respeita à revogação propriamente dita, optou-se, no artigo 140º, por estabelecer a regra da livre revogabilidade dos actos administrativos, exceptuando, além dos actos que poderemos qualificar como actos devidos, os “actos constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos” – neste caso, salvo se houver concordância do particular e essa concordância for possível, como resulta do nº2 do mesmo artigo.
Também aqui me parece revelar-se alguma falta de atenção à diversidade das situações concretas possíveis, tendo-se considerado apenas, em abstracto, a estabilidade jurídica de certo tipo de actos.
De facto, diz-se que o acto administrativo é livremente revogável, salvo se for constitutivo de direitos ou interesses legalmente protegidos, caso em que será sempre irrevogável. Isto é, assegura-se pura e simplesmente a estabilidade desses actos, sem medir os interesses em jogo, desprezando a eventual relevância da revogação para o interesse público, e não curando de saber se os interesses do particular merecem tutela, se a confiança depositada na estabilidade das posições jurídicas subjectivas constituídas é, ou não, digna de protecção da ordem jurídica.
Ora, há determinadas situações e que, seja por alteração da lei, seja pela alteração da situação de facto, seja mesmo pela alteração fundamentada das concepções da própria Administração, o interesse público pode tornar inconveniente ou até imperiosa a revogação de um acto administrativo constitutivo de direitos.
E, se isto acontecer, talvez se deva admitir a revogação, pelo menos em determinados casos, quando a realização do interesse público justificas inequivocamente a supremacia em face dos interesses dos particulares, e sobretudo se não houver razão para proteger a confiança do particular na manutenção da situação constituída – designadamente, quando o particular não estiver de boa fé (a má fé não implica necessariamente a ilegalidade do acto). Claro que, tratando-se de extinguir ou de restringir direitos ou posições jurídicas constituídas, a Administração teria de indemnizar o particular pelos prejuízos causados pela revogação, nos termos gerais em que se estabelece a indemnização por actos ablatórios.
Esta possibilidade deveria talvez ser admitida para que o interesse público pudesse ser prosseguido pela Administração da forma mais adequada às circunstâncias, embora só em casos contados e com as devidas cautelas, de modo a garantir as legitimas expectativas dos particulares – seria uma vez mais, adoptar uma solução em que se procederia a uma ponderação entre o interesse público e os interesses particulares em jogo.
Julgo que a solução do Código revela, por isso, uma preocupação legítima, mas porventura excessiva, de garantir o particular, prejudicando a desejável flexibilidade na realização do interesse público a cargo da Administração.
E esta dúvida é tanto mais forte quanto é certo que o artigo 140º não ressalva só da revogação dos actos constitutivos de direitos mas também os actos constitutivos de interesses legalmente protegidos.
Se a expressão “actos constitutivos de direitos” era já um conceito de difícil concretização em face do ordenamento anterior, a doutrina e a jurisprudência vão ter dificuldades acrescidas em determinar o que é um acto constitutivo de interesses legalmente protegidos. Desde logo, porque não se vê bem como um acto administrativo possa visar directamente a constituição de um tal interesse; depois porque tal expressão poderá alargar de forma incomportável o conjunto dos actos susceptíveis de revogação: pense-se, por exemplo, em factos favoráveis precários, que não são considerados como constitutivos de direitos, ou em geral, nas licenças e concessões, quando os direitos constituídos a favor do particular funcionam relativamente à Administração como interesses legítimos, precisamente porque “estão enfraquecidos” em face do poder de revogação desta, ainda que com a obrigação de indemnização.
É claro que, em rigor, o artigo 140º do Código não afirma que, nesses casos, não possa haver revogação, mas tão só que os actos administrativos não são livremente revogáveis, o que pode levar a entendimentos habilidosos susceptíveis de permitir soluções diferenciadas. No entanto, julgo que o código só ganharia se fosse claro neste aspecto: não lhe sendo exigível que fornecesse uma definição de acto constitutivo de direitos, seria de esperar, pelo menos, que não provocasse novos problemas de aplicação.

3. Outros aspectos do regime da revogação

Por último salientaria apenas matérias que o Código não regula ou problemas a que não dá resposta, apesar de alguns deles terem sido contemplados em projectos anteriores.
Assim acontece, no meu entender, com o problema da revogação de acto praticado por um órgão incompetente. De facto, não pode pretender-se que o nº1 do artigo 142.º, ao estabelecer que são competentes para a revogação os autores do acto (ou, em certos casos, os superiores hierárquicos), esteja a consagrar a solução de que o órgão competente nunca pode revogar actos praticados por órgão incompetente, proibição que não decorre necessariamente do texto e me parece injustificável, sobretudo se entendida como proibição geral, envolvendo a própria revogação por substituição. Parece-me muito mais adequado interpretar o Código no sentido de que esta matéria não está regulada, tal como não foi contemplada a hipótese paralela de alteração superveniente das competências, embora essas hipóteses devessem estar expressamente resolvidas.
O Código também não se pronuncia sobre a proibição, defendida na doutrina, de o delegado revogar actos praticados pelo delegante, apesar de contemplar a hipótese inversa. Assim como não se refere à admissibilidade da reserva de revogação como cláusula acessória dos actos administrativos, ausente da enumeração feita no artigo 121º - embora esta falta não deva ser interpretada no sentido da impossibilidade da aposição de reservas de revogação aos actos administrativos, ela cria, pelo menos, algumas dificuldades.
Do mesmo modo, não ficou resolvida, mas quanto a isso julgo que bem, a questão de saber se a Administração tem o dever de revogação, designadamente o dever de anulação de um acto administrativo ilegal: dado que essa questão não está hoje suficientemente esclarecida, é prudente deixá-la ainda em aberto ao labor da doutrina e da jurisprudência.

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Diogo Câmara. 140110510
João Queiroga-Perdigão. 140110026

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