1. Introdução:
Pela revisão
do Código de Procedimento Administrativo ocorrida em 1996 (introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro) o legislador consagrou, de forma
expressa, no seu art. 6.º-A, a vigência do princípio da boa fé no âmbito da
actividade administrativa.
Só
posteriormente foi o princípio da boa fé incluído no art. 266.º, número 2 da
Constituição, pela revisão constitucional operada em 1997, enquanto princípio
fundamental ao qual estão subordinados os órgãos e agentes administrativos no
exercício das suas funções. A sua positivação constitucional mais não foi do
que a concretização da tutela da confiança, em si decorrente do princípio do
Estado de Direito, por sua vez consagrado no art. 2.º da CRP: o princípio do
Estado de Direito postula a ideia de protecção da confiança dos cidadãos face
às actuações do Estado, implicando um mínimo de certeza e de segurança na vida
jurídica do Estado[1].
Embora encontre
acolhimento no Direito Público, foi no Direito Privado que a dogmática da boa
fé mais se desenvolveu, dando origem a institutos como o abuso do direito. A
sua configuração privatista foi acolhida, cum
granu salis, para o âmbito do Direito Administrativo. Neste curto ensaio
propomo-nos reflectir em que medida a boa fé, em especial a sua concretização
no subprincípio da primazia da materialidade subjacente, foi recebida no seio
do Direito Administrativo Português.
2. Pistas para a sua
concretização
2.1. Considerações
gerais e âmbito de aplicação:
O princípio da
boa fé impõe que a conduta administrativa se funde em valores básicos do
ordenamento jurídico, implicando que a Administração adopte condutas
consequentes e não contraditórias em função dos fins que se propõe alcançar. Não
só determina que a Administração Pública aja de boa fé com os particulares,
como significa que a Administração deve dar exemplo aos particulares da
observância da bona fides. Sem a boa
fé nunca se poderia afirmar, diz FREITAS DO AMARAL, que o Estado é “pessoa de bem”[2].
São conhecidos
os subprincípios que acompanham a boa fé no Direito, a saber: a tutela da
confiança e a primazia da materialidade subjacente. É curioso notar que a
doutrina que desenvolve a boa fé no campo do Direito Administrativo faz
frequentemente apelo à tutela da confiança, com base no pensamento de que a
protecção da confiança corresponde a um princípio ético-jurídico fortemente
radicado na ideia de Direito, encontrando apoio normativo no art. 6.º-A, n.º 2,
alínea a) do CPA, descurando, pelo contrário, a materialidade subjacente.
A aplicação do
subprincípio da tutela da confiança estará sujeita, no Direito Administrativo,
aos mesmos pressupostos utilizados no Direito Civil: existência de uma situação
de confiança, ou seja, um comportamento gerador de confiança; existência de uma
justificação para a confiança; frustração da confiança por parte de quem a
gerou; e existência de um investimento de confiança. Estes pressupostos
constituem um sistema móvel, podendo a falta de um deles ser suprida pela
intensidade especial com que um outro se verifique, como bem defende MENEZES
CORDEIRO.
O princípio da
tutela da confiança encontra variadas concretizações jusadministrativistas, mas
é em sede de formação dos contratos administrativos que vale com especial
força, determinando que a Administração não altere injustificadamente o seu
critério, não negue o prometido, não formule novas exigências, etc. Mutatis mutandis, poder-se-ão chamar à
colação os deveres laterais e acessórios que decorrem do art. 227 do Código
Civil.
A
jurisprudência tem entendido que o princípio da boa fé só opera no âmbito da
actividade discricionária da Administração, não cabendo no plano da actividade
legalmente vinculada. MARIA DA GLÓRIA GARCIA, na anotação que faz ao art. 266
da CRP, defende posição contrária, sem apresentar, contudo, qualquer argumento.
Ainda assim, deixa-se adivinhar o que possa fundamentar a aplicação do princípio da boa fé no âmbito da actividade legalmente
vinculada: por um lado, no processo hermenêutico que compete à
Administração (lembremo-nos que não vinga, no Direito, um princípio de in claris non fit interpretatio, e por
isso há também interpretação quanto a normas de poder vinculado), parece ser
imperativo constitucional e procedimental que esta proceda à actividade
interpretativa de boa fé, não podendo violar a confiança que se tenha suscitado
(veja-se, por exemplo, a possibilidade de um agente administrativo interpretar um
poder vinculado num sentido, e de um outro agente realizar interpretação
dissonante); por outro lado, a boa fé introduz uma série de deveres, tais como
deveres de actuação consequente, de informação criteriosa, inter alia, que também existem no plano dos poderes vinculados.
Ainda assim, o
instituto da boa fé tem de ser aplicado cum
grano salis, isto é, como último recurso. A boa fé apresenta-se sempre como
a “válvula de escape” do sistema, apta à correcção de injustiças, que, pela
violência que apresentam face à ordem jurídica, devem ser repudias, em especial
pela mão do juiz.
2.2. O princípio da
boa fé e o acto administrativo:
Um primeiro
aspecto em que a boa fé encontra clara aplicação é na interpretação do acto administrativo. A interpretação do acto administrativo
não se esgota nos elementos literais, sendo igualmente relevante para a fixação
do seu sentido e alcance, entre outros elementos, o sentido que a Administração
atribuir ao acto, na medida em que se presume que esta agiu de boa fé e, por
isso, de forma coerente e não contraditória. Encontramos assim a boa fé a dar
um influxo interpretativo valioso para aquela que é uma das formas por
excelência da actuação administrativa. A tutela da confiança (contida no art.
6.º-A, n.º 2, alínea a) ) impõe que se proteja a posição do particular que,
face a um acto administrativo e a uma actuação da Administração, assume que o
sentido apropriado a dar ao acto administrativo é aquele que a Administração
dá. Se assim não fosse, estar-se-ia perante um verdadeiro venire contra factum proprio, visto que a Administração viria a
materialmente adoptar um dos sentidos possíveis do acto, não podendo depois
invocar erros interpretativos contra o particular.
Um outro campo
em que a boa fé interfere na vida e na morte do acto administrativo prende-se
com a produção de efeitos jurídicos do
acto nulo. Resulta do art. 134.º, n.º 1 do CPA que «o acto nulo não produz qualquer efeito». Todavia, no plano das
invalidades interfere um elemento quase-naturalístico, que se prende com o facto
de os actos nulos serem admitidos a produzir efeitos com base em «situações de facto (…) por força do simples
decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito» (veja-se
o n.º 3 do artigo referido). Ora, daqui decorre que os actos nulos vêem alguns
dos seus efeitos de facto consolidados em efeitos jurídicos pelo decurso do
tempo. Não basta, ainda assim, o mero facto natural que constitui o decurso do
tempo, mas a sua conciliação com os princípios gerais de direito, o que faz
operar-se uma recepção da boa fé neste caso; estará em causa, particularmente,
a tutela da confiança do particular que, com base numa situação de facto,
acredita, justificadamente, que o acto é válido e estará apto à produção de
efeitos.
No entanto,
pode questionar-se com propriedade qual o sentido da restrição incluída no art.
134.º, n.º 3, de o único facto admitido como justificação para a produção de
efeitos do acto nulo ser o decurso do tempo. Entende-se, claro, a sua
preponderância: o decurso do tempo cria uma situação de facto muito
concretizada e objectiva, de fácil avaliação. Mas perguntar-se-á, face a uma
outra qualquer situação de facto, ainda que não cristalizada pelo decurso de um
lapso relevante de tempo, se não será justo admitir alguns efeitos aos actos
nulos. A resposta parece-nos dever ser positiva: em situações de facto tais, que
suscitem no destinatário do acto a confiança, quer na sua validade pura e
simples, quer até na sua aptidão à produção de efeitos determinados, poderá a
boa fé exigir a produção dessas efeitos, nos quais o destinatário do acto
confia. Desta forma, situações de facto em que a Administração executa o acto e
em que o particular se conforma com essa execução, investindo na confiança que
depositou na validade do acto, ainda que decorrentes de um acto nulo, poderão
sedimentar-se. Não se afigura correcto, todavia, procurar na boa fé a
convalidação de um acto nulo; propendemos a aceitar a tese, de resto decalcada
do tratamento dado ao instituto no Direito Civil, de que a boa fé se torna de per si um novo título jurídico, uma
realidade ficta que manda, por imperativos de vária ordem, acatar os efeitos de
um acto nulo.
3. o art. 6.º-A, n.º
2, alínea b) do CPA enquanto moderador: “os fins justificam os meios?”
Em toda a
dogmática nos deparamos com uma dificuldade acrescida na definição do que seja
a materialidade subjacente e, mais ainda, qual seja o sentido do art. 6.º-A,
n.º 2, alínea b) do CPA.
O subprincípio
da materialidade subjacente costuma repristinar a ideia de que o Direito não se
basta com meras actuações formais, desprovidas de conteúdo, e exige que aos
comportamentos corresponda uma verdade material que traduza uma ponderação
finalística de cada conduta. Não obstante a sua complexidade, o subprincípio da
materialidade subjacente não é de somenos importância, pois é através dele que
se proíbe o exercício inadmissível das posições jurídicas.
Muitas vezes,
o subprincípio da materialidade subjacente é descurado por ser considerado
incompatível com o princípio da legalidade, que alegadamente introduziria um
formalismo tal a que não era possível subsumir-se. E ainda, por se dizer que o
seu conteúdo é pouco útil, pois se encontra absorvido pelo princípio da
proporcionalidade[3]. Esta mesma
doutrina vem dizer que o princípio da materialidade subjacente já adquire
relevância enquanto parâmetro das condutas dos particulares.
Tal posição,
com a devida vénia, não é de acolher, pois traduz uma mentalidade autoritária
da Administração e perpassa uma ideia de que os particulares são desconfiáveis,
ao passo que a Administração é de plena confiança. A materialidade subjacente
encontra, como curiosamente vem a afirmar, num verdadeiro venire, MARCELO REBELO DE SOUSA, consagração legal explícita na
alínea b) do artigo dedicado à boa fé, pelo que seria antijurídica qualquer
tentativa de afastar a vinculação da Administração por via da materialidade
subjacente.
De facto, ao
apelar ao «objectivo a alcançar com a actuação
empreendida», o CPA introduz como vector de aferição da actuação, tanto dos
particulares como da Administração, a ideia de que os comportamentos
correspondam à verdade material, e não à mera verdade formal, vector que não se
encontra, de forma alguma, no princípio da proporcionalidade, que mais opera
uma ponderação da medida, necessidade e adequação do comportamento, em função do
fim, do que se preocupa com a verdade material, que é uma exigência de Justiça.
Embora afastando
a ideia de que “os fins justificam os
meios”, cremos que o subprincípio da materialidade subjacente poderá trazer
para a administração pública figuras como as inalegabilidades formais (será inadmissível
que a Administração ou o particular, provocando o vício de forma de má fé, se
possa prevalecer desse vício para inquinar qualquer actuação administrativa) ou
o desequilíbrio no exercício do direito (quando a proporcionalidade, por
qualquer razão, não permita trazer equilíbrio à relação jurídica administrativa).
4. Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, et al., Código do Procedimento Administrativo Anotado, 6.ª edição, Coimbra,
Almedina, 2007.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, 2.ª
edição, Coimbra, Almedina, 2011.
BOTELHO, José Manuel Santos, et al., Código do Procedimento Administrativo – Anotado e Comentado, 5ª
edição, Coimbra, Almedina, 2002.
CORDEIRO, António Menezes, Da Boa Fé no Direito Civil, Volume I, 1ª
edição, Coimbra, Almedina, 1983.
CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Tomo
V, 1ª edição, reimpressão, Coimbra, Almedina, 2011.
MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007.
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª
edição, reimpressão, Publicações Dom Quixote, 2010.
[1]
Neste sentido, veja-se, v.g., o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 556/03, citado em MIRANDA, Jorge, e
MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa
Anotada, Tomo III, pág. 574.
[2] Freitas
do Amaral, in Curso de Direito
Administrativo, Volume II, pág. 148.
[3] Veja-se,
neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa, in
Direito Administrativo Geral, Tomo I, pág. 221.
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