sexta-feira, 9 de março de 2012


 Colhe o Dia, Porque És Ele

Uns, com os olhos postos no,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis, in " Odes"


Perguntar-se-á em que medida o estoicismo de Ricardo Reis e a sua busca insaciável pelo prazer do momento se relacionam com o estudo do Direito Administrativo. Prima facie ,tratar-se-á, de certeza, de uma disfunção. Como relacionar realidades tão dispares e antagónicas, cada uma pertencente a um ramo específico do Saber? Como superar os contrastes quanto aos respectivos enquadramentos e finalidades?
A poesia representa, à semelhança do Direito, uma das manifestações mais imediatas do génio humano. Menosprezar o poder das palavras é, necessariamente, subvalorizar as potencialidades do Homem para se regenerar e reinventar e, ainda mais importante, para se relacionar e realizar. Assim, no quadro de uma " personificação" do Direito Administrativo, sorrorrer-me-ei do génio de Pessoa para retratar, ainda que de forma embrionária, a evolução, a actualidade e os desafios do Direito Administrativo.

" Uns, com os olhos postos no passado, vêem o que não vêem":

O Estado Liberal de Direito representa, se quisermos, o primeiro modelo sistemático e organizado da Administração Pública. A realidade efervescente que caracterizou o período subsequente à Revolução Francesa de 1789 influenciou decisivamente a construção do paradigma administrativo: imperativos de ordem e segurança públicas, harmónicos com um princípio de separação de poderes estático e rígido, legitimaram uma matriz autoritária e centralizada do Direito Administrativo, encarado como o complexo normativo privativo da Administração. O endeusamento do acto administrativo contribuiu para sua configuração enquanto instrumento de actuação único das entidades administrativas, titulares de " prerrogativas exorbitantes" para o exercício da sua actividade.
O compromisso com o Estado de Direito, ainda que formalmente assegurado com o princípio da legalidade, claudicou redondamente, evidenciando perplexidades: o indíviduo, se num momento (constituinte) era encarado como um vértice apriorístico e superior ao próprio Estado, noutro constituia objecto da actuação discricionária da Administração. Não só o movimento legiferante foi exíguo, como não foram outrossim assegurados mecanismos de protecção jurisdicional das garantias dos particulares: " julgar a Administração é ainda, e deve continuar a ser, administrar" como lapidarmente propugnou CHAPUS, determinando o florescimento de uma arquitectura jurisdicional privativa.

O despontar do Estado Social e da Administração prestadora constituiu uma superação de algumas das incongruências da construção liberal. Os excessos da industrialização e do capitalismo constituiram um fenómeno de consciencialização colectiva no tangente às funções do Estado: perante uma patente deterioração do tecido social, a máquina estadual assume as rédeas da vida económica, social e cultural, intervindo em múltiplos sectores da vida social. A Administração Pública, originariamente distante da sociedade, relaciona-se e interliga-se agora com ela, escrevendo mais um capítulo na dinâmica evolutiva do Direito Administrativo: o Welfare State é, antes de mais, o Estado-Administração.

" Este é o dia, está é a hora, este é o momento isto / É quem somos, e é tudo"

A abordagem tentacular e omnipresente que caracterizara o último período pecou igualmente pelos seus excesssos: a máquina administrativa de prestações não soube acompanhar a incessante diversificação dos fins da colectividade, e o aparelho prestador não tardou em evidenciar as suas insuficiências. Concomitantemente, as adversidades no plano económico e financeiro - cite-se, a título exemplificativo, a crise dos anos 70 e o surto neoliberal dos anos 80 - justificaram a inflexão do paradigma administrativo então vigente.
A matriz hodierna do Direito Administrativo - dito de prospecção ou de infra-estruturas - aproxima-se das emoções do "eu" poético, inclusive ultrapassando-as. No momento de crise do Estado-Providência," perene flui(a) a interminável hora" em que era manifesta a inércia do poder estadual e das estruturas tradicionais. A " nulidade" que surge espelhada no espírito do sujeito lírico  correspondia à passividade do Estado Social, petrificado em face dos novos ventos. Um sentimento crescente de insatisfação, insegurança e desassossego percorria o corpo social, sedento de uma alteração.
É mister proporcionar uma abertura ao influxo da sociedade civil. Daqui não decorre que se vá operar uma pulverização dos centros de decisão e um rompimento diametral com velhas concepções: importa sim promover uma valorização de mecanismos de justiça e solidariedade social, aperfeiçoando a herança deixada pelos antigos cultores da Teoria Geral do Estado e do Direito Administrativo.
No concernente às relações jurídicas administrativas, a tónica radica na sua multilateralidade: derrotados os cânones autoritários e unilaterais, o Direito Administrativo é o complexo normativo disciplinador da função administrativa, prosseguida por uma multiplicidade de sujeitos: os particulares, vendo as suas garantias efectivadas e protegidas em face da Administração, podem exigir contenciosamente a realização das suas vantagens. A sociedade " É quem somos, e é tudo". Estamos todos convocados para a promoção e realização da actividade administrativa, estreitando laços e assegurando uma coesão e compreensão alargada, através da harmonização de interesses públicos e privados. Porque " os mesmos olhos no futuro vêm, O QUE PODE VER-SE".

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